A arte de enterrar dinheiro
Brasil perde US$ 10 bilhões a cada ano por não reaproveitar o lixo que produz. É como se fosse jogada fora toda a verba do Bolsa Família
MAURI KÖNIG
Diz o bom senso que rasgar dinheiro é sintoma de insanidade. O brasileiro não rasga, mas enterra. “É uma loucura real”, diz o economista Sabetai Calderoni. Doutor em Ciências Econômicas e diretor-presidente do Instituto Brasil Ambi¬ente, ele fez um estudo revelador: calculou a água e a energia gastas para transformar a matéria-prima virgem e comparou com os gastos para se chegar ao mesmo produto final se fosse utilizado material reciclado. Incluiu na conta os custos de transporte dos resíduos e as despesas com aterro sanitário. O resultado: o Brasil perde US$ 10 bilhões todos os anos por não recuperar todo o seu lixo.
Pelas contas de Calderoni, a cada ano joga-se literalmente no lixo uma quantia igual à do Bolsa Família, programa que socorre 50 milhões de pobres no país. O cálculo, analisado no livro Os bilhões perdidos no lixo, parte de bases concretas. A prefeitura de uma cidade de 200 mil habitantes, por exemplo, gasta em média R$ 8 milhões por ano com transporte de dejetos. Se reciclasse todos os resíduos sólidos, além de economizar os R$ 8 milhões ainda ganharia R$15 milhões com a reciclagem, inclusive dos restos orgânicos. Ou seja, gastam-se 8 para enterrar 15. No final, o ganho real seria de R$ 23 milhões.
Para Calderoni, a destinação do lixo já não é só um problema ambiental, mas também econômico, pois é necessário ir cada vez mais longe para descartar os resíduos, o que encarece a operação. Em São Paulo, o transporte representa dois terços dos gastos. “É como se gastasse uma fortuna para enterrar ouro”, diz. O lixo é matéria-prima, e tem de ser visto como tal. Para ele, estamos muito próximos da encruzilhada final. “Não há saída. Os aterros ficarão cada vez mais caros, a ponto de se tornarem inviáveis para qualquer prefeitura”, vaticina. O caminho? Usinas de reciclagem para reaproveitar tudo, de entulhos a orgânicos.
Com trabalhos na área de resíduos e meio ambiente reconhecidos internacionalmente, por meio de pesquisas ou como consultor da Organização das Nações Unidas, Calderoni diz que a solução é tão simples quanto evidente: estações de reciclagem integral do lixo, com várias soluções no mesmo espaço. “E um centro de reciclagem ainda tem a vantagem de ocupar uma área sete mil vezes menor que a de um aterro sanitário”, compara. Em uma cidade do porte de Curi¬tiba, por exemplo, diz que poderia haver uma central de reciclagem em cada ponto cardeal, reduzindo o custo do transporte.
Segundo Calderoni, não custaria mais do que R$ 10 milhões uma usina para reaproveitar todo tipo de resíduo, do lixo domiciliar ao entulho de construção, do caco de vidro à poda de árvores. “O melhor de tudo é que pode sair a custo zero para o município, bastando para isso uma parceria público-privada”, conclui. Matéria-prima não falta. Metade das 140 mil toneladas de restos gerados todos os dias no país ainda acaba nos lixões. O Brasil tem 1,5 mil desses lugares, a forma mais rudimentar no armazenamento de detritos, onde o lixo é jogado sem cuidado e sem tratamento.
Pelos dados do Diagnóstico do Manejo de Resí¬duos Sólidos Urbanos 2006, com informações de 247 municípios onde se concentra 50% da população brasileira, 61% do lixo coletado nessas cidades vai para aterros sanitários. Os aterros controlados, com uma estrutura melhor do que os lixões, mas onde há o trabalho de catadores, recebem 25% do lixo. Já o lixões ficam com 13,6% do material coletado, nos municípios que repassaram informações para o diagnóstico. Contudo, a amostra analisada representa grandes centros urbanos, enquanto a maioria dos lixões ainda está nas cidades pequenas e médias.
Em média, 55% do descarte em peso é de resíduos orgânicos, o que influi diretamente na disposição final em aterros, pois dificulta o gerenciamento, especialmente o tratamento do chorume e de gases oriundos da decomposição da matéria orgânica, que contribuem de forma significativa para o efeito estufa caso não sejam drenados. Apenas 14% dos brasileiros são atendidos com coleta seletiva, em 7% dos municípios, 83% deles no Sul e Sudeste. Já foi pior.
Há 15 anos, só 81 cidades faziam o serviço em escala significativa, chegando a 405 no ano passado. Em números absolutos, os brasileiros atendidos passaram de 25 milhões para 26 milhões entre 2006 e 2008, segundo pesquisa bianual da organização Compro¬mis¬¬so Empresarial para Reci¬cla¬gem (Cempre), principal fonte do país sobre coleta seletiva. Em Belo Horizonte e Porto Alegre, 100% da população contam com o serviço, seguidas de perto por Curitiba, Itabira (MG), Santos (SP) e Santo André (SP).
O setor de reciclagem movimenta no país R$ 8 bilhões por ano, podendo crescer em curto espaço de tempo se alguns gargalos forem eliminados. Dentre eles, o Cempre destaca a capacitação técnica, uma política fiscal/tributária coerente e o incremento da participação popular. Nesta fase, o que era lixo é transformado em matéria-prima, em novo insumo para a indústria, sendo reintroduzida no ciclo produtivo. No Brasil, a reciclagem de lixo urbano gira em torno de 12%. Alguns tipos de materiais apresentam índices equivalentes aos mais elevados do mundo, como as latinhas de alumínio, papelão e plásticos tipo pet.
Papelão e alumínio apresentam os mais elevados índices de reciclagem do país, de 77% e 94% respectivamente. Para os metais ferrosos, incluídas as embalagens, o país possui uma rede consolidada de sucateiros que alimentam algumas siderúrgicas, que em alguns casos chegam a operar com mais de 85% de matéria-prima oriunda do comércio de sucatas. O vidro, apesar de algumas restrições quanto ao transporte, também é reciclado em algumas partes do país. A fração mais significativa do que é coletado volta para as grandes vidrarias.
Embalagens longa-vida têm apresentado uma boa evolução no índice de reciclagem, impulsionada pelo reaproveitamento das fibras de celulose, de alta qualidade, por parte das indústrias de papel e papelão. A recente tecnologia de plasma, desenvolvida no Brasil, permite o aproveitamento do alumínio e do plástico também presentes na em¬¬balagem. Essa tecnologia está sendo exportada para Ásia e Europa e colocou o Brasil como líder mundial de reciclagem de embalagens longa-vida (24% em 2006) entre países em desenvolvimento.
Multa para quem não separa
Não separar o lixo reciclável de maneira correta dá multa em Curitiba. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente multou 627 pessoas, empresas e condomínios residenciais entre janeiro de 2006 e junho de 2009 por não colaborar com a coleta seletiva. Primeiro os fiscais orientam sobre a separação, o dia e o horário do caminhão de coleta do lixo orgânico e do reciclável. Cabe multa a quem não faz a separação correta ou a quem acondiciona os resíduos na lixeira fora do dia ou horário apropriados. As multas variam de R$ 250 a R$ 12,8 mil, no caso de reincidência. Quem não paga é incluído na dívida ativa do município.
Isso acontece porque o problema começa em casa, pois falta a cultura da separação para reciclagem. Cada brasileiro produz, em média, 920 gramas de lixo sólido por dia, mas a quantidade recuperada, seja na coleta seletiva, seja por catadores, chega a apenas 2,8 quilos por ano, ou ínfimos 7,5 gramas por dia por habitante. Isso significa que menos de 1% dos restos é reaproveitado. Os dados são os mais recentes do país, extraídos do Diagnóstico do Manejo de Re¬¬síduos Sólidos Urbanos, feito em 2006 pelo Sistema Nacional de Informação sobre Sanea¬mento.
Não sem motivo, o Ministério Público do Paraná está propondo aos municípios a criação de leis que tornem obrigatória a separação do lixo reciclável nas residências e empresas. “O cidadão não pode separar só pela sua consciência”, diz o coordenador da Promotoria de Proteção ao Meio Ambiente, Saint-Clair Honorato Santos. Daí uma lei para impor o melhor reaproveitamento dos resíduos. A proposta do promotor instigou o vereador Tico Kuzma, que saiu às ruas para investigar quanto os curitibanos estão desperdiçando. Vasculhou as lixeiras de seis bairros pouco antes da passagem do caminhão de lixo orgânico.
Na amostragem do vereador, 20% dos 70 quilos recolhidos eram plástico, papel, metais e vidros, ou seja, materiais recicláveis. Por essa média, conclui-se que algo em torno de 500 toneladas poderiam ser reaproveitadas em usinas de reciclagem caso fossem separadas em casa, bastando para isso usar a lixeira correta e prestar atenção ao dia e ao horário do caminhão da prefeitura. (MK)
Parques agrupam coletores
A prefeitura de Curitiba já pôs em funcionamento cinco dos 25 Parques de Reciclagem Eco¬cidadão previstos para dar a 2,5 mil coletores uma estrutura pa¬¬ra armazenamento, separação, pesagem e venda de materiais recicláveis. O programa profissionaliza o setor, retira o carrinheiro da marginalidade no mundo do trabalho. O material coletado é pesado individualmente e o dinheiro rateado entre os associados uma vez por semana.
Mais do que impedir que os catadores levem os detritos para suas casas, os barracões comunitários devem estimular o sistema de cooperativas e associações. Somente cooperados poderão fazer uso de equipamento, como forma de estimulá-los a se agregar, vencendo certas regras da informalidade.
Os galpões também minimizam danos ambientais, especialmente nos fundos de vale, onde grande parte do mundo do lixo de desenvolve. Com abrigos adequados para a estocagem, a tendência é mudar a cultura de reciclagem, hoje pautada no acúmulo de papel e plástico dentro das casas dos carrinheiros, além de reverter uma atividade que se constitui de forma solitária, imediatista, à mercê dos atravessadores e perpetuadora da miséria.
A prefeitura mantém ainda o programa Compra do Lixo em áreas onde não chegam os caminhões de coleta. Até quatro sacos vale uma sacola com um tipo de produto alimentício, como arroz, feijão, mel, batata, cenoura, cebola, alho e doce. Para cada saco de lixo, a associação de moradores recebe 10% do valor pago para aplicar em obras ou serviços definidos pela própria comunidade. Em outro programa, o Câmbio Verde, o lixo reciclável é trocado por hortigranjeiros. Cada 4 quilos de lixo valem 1 quilo de frutas e verduras. Podem ser trocados também óleo vegetal e gordura animal. (MK)
domingo, 25 de abril de 2010
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